Poemas de Fabio Weintraub
Estilo
(de uma entrevista
com Tom Waits)
I .
A maneira pela qual
você faz
uma coisa
é a maneira
pela qual
faz todas as coisas
Você lava o carro
do mesmo jeito que
corta o cabelo
anda a cavalo
cria seus filhos
Depois dos filhos
todo o resto
fica (muito) fácil.
II.
É como pescar
ou caçar
passarinhos
Você cava um buraco
na parede
e espera
que alguém
ou alguma coisa
cave de volta
na sua direção
III.
Como faço
para ter uma voz
assim grave?
Grito com a cara no
travesseiro
Grito com meus
filhos
(inédito)
Übermensch
para Viviana
Disse-me uma amiga
certa feita
que o máximo
da delicadeza
é entrar
num quarto vazio
onde haja um espelho
e vê-lo
vazio
livre da dívida
de nos refletir
Vampiros são muito suaves
(de Sistema de Erros, 1996)
Risco
a nódoa azul
nos pães da véspera
um resto de orvalho
na pólvora agora
o leite coalhado
na teta órfã
sustos
ante o quê
por úmido
estraga
ou floresce
(de Sistema de Erros, 1996)
A rosa púrpura do Cairo
One thing is certain and the rest is lies.
The flower that once has blown for ever dies.
Omar Khayyám/ Edward Fitzgerald
Ontem nalgum
(deu na tevê)
subúrbio do Cairo
circuncidaram Hedla
aos dez anos
Sem medo a jovem
abriu as pernas
(para a lei
não para o amor)
e o cutelo
sem éter
seu clitóris
mastigou
Pode a família
erguer-se em cantos
crescer em preces
de vão louvor
Pode a polícia
o comércio
a imprensa
contra o cio
balbuciar
Pode o camelo
gastar a lágrima
que há meses
vinha poupando
Pode o deserto
alagar
sem que Hedla se
levante
Três dias na cama
três dias para que
se erga
e feche as coxas
após o saque
(caso não morra de
infecção)
Três dias
para que o mundo
esqueça
o que se faz
às meninas pobres
do Cairo:
deusas eunucas
nos haréns do
aquém
(de Sistema de Erros, 1996)
Mãe
Então me informaram
que os pertences da
paciente
— um par de brincos
mais um colar —
deveriam ser
retirados
pois há quem se
fira
ou fira os outros
em tal estado
Minha mãe suplica:
precisa de talismãs
pra passar a noite
fora de casa
Só assim ficará
protegida
O Inimigo não a
tocará
Expliquei-lhes que
não era caso
para um tal rigor
Minha mãe não era
disso
só estava muito
triste
e confundida
A funcionária
assentiu a contragosto
Devolveram-lhe as
bijuterias
assinei o termo de
responsabilidade
e ainda pude ver os
enfermeiros chegando
antes de ser
forçado a sair
(de Novo endereço, 2002)
Gerenciamento Anti-Stress
Imagine um córrego
Há pássaros
cantando
e o vento fresco da
montanha
no céu de um azul
limpíssimo
Aqui nada pode
aborrecê-lo
Ninguém alcança
esse lugar secreto
sem passagem para o
mundo
A queda d'água
enche o ar de sons
gentis
A água é
transparência absoluta
Agora, sim, pode-se
ver o rosto
daquele cuja cabeça
você comprime sob a
água
(de Novo endereço, 2002)
Prometeu
o fogo roubado
não é senão
a branquinha
humilde:
brasa solitária
entre os carvões da
vida
a ira divina
é pouco mais
que a recusa do
garçom
em servir
a enésima dose
fiado
o castigo
este sim
tem a grandeza do
mito:
a cirrose vulturina
com a família nas
garras
da Previdência
(de Novo endereço, 2002)
Pai
Desempregado há
três anos
no país do futuro
Batendo perna nas
ruas
com o mostruário de
meias
Adivinhando
o signo da morena
o ascendente da
loira
Jogando xadrez
assobiando um samba
colecionando
borboletas
descobrindo a
fórmula exata
da tinta para balão
(tinta que não
racha
sobre a pele
inflável)
Contra as
determinações médicas
filando cigarro
fazendo piada com a
perna
que pode ser
amputada
louvando as
próteses modernas
dizendo que morre
antes disso
que não vai dar
trabalho
que some de casa
vai pro asilo
Meu pai de novo ao
volante
guiando o negro
Landau
O velho e bom
batmóvel
rodando sem freio
ou cinto
o vento de Gotham
no rosto
minha cabeça no
banco de couro
Meu pai cantando
alto
limpo e bonito como
só ele
numa estrada clara
sem pedágio ou
limite
de felicidade
(de Novo endereço, 2002)
Por trás
O prato ainda sobre
a mesa
(arroz com frango)
pra quando ele
voltasse
Tinha era muita
raiva
Tanto que pediu
pra ele vender o
táxi
deixar de rodar à
noite
Pressentir é fácil
falta entendimento
Bem que estranhou o
fato
dele voltar duas
vezes
parar na porta
olhar pra ela sem
motivo
Alguém disse que no
caixão
ele tava bonito
Tava não
Repuxando o rosto
o tiro na cervical
varou a jugular
o esvaziou pela
boca
(de Novo endereço, 2002)
Seqüência
Tudo se dá
lentamente
sem sinais
ostensivos
Um dia esquecem
de trocar os
lençóis
ou colocam a cama
rente à porta
em posição propícia
a esbarrões
freqüentes
Depois
por conta dalgum
defeito
mandam o monitor
pra manutenção
A cânula entra meio
torta
Quem tiver
paciência
verá a máscara de
dor
armar-se sobre o
rosto amado
Na hora certa
um enfermeiro
moreno e rápido
cerca o leito com
um biombo
preme a última
seringa
Na casa dos
parentes
o telefone toca
(de Novo endereço, 2002)
Meus olhos
Os caminhos estão
fechados
Há uma corda atando
mundos
um cão fuçando a
sombra
um porco na oquidão
Sou o soco nas
costas do retardado
a órfã de castigo
o cego que
aleijaram
pra completar o
escuro
Sou a vampira que
dá de mamar
o chiclete no
cabelo da professora
o pirulito sobre o
qual mijaram
Sou a raquete
arrebentada
o omelete que não
deu certo
o homem que se
afogou no Canal da Mancha
Meus olhos se
espalham
sobre a tua cara
(de Novo endereço, 2002)
Novo endereço
Outra janela
enquadra a rua:
barulho de carros,
pessoas
No armário novo
outra porta se
fecha
sobre a velha
camisa
(virei o colarinho
e ele puiu
novamente)
Sobre o sono leve
outra lâmpada se
apaga
De outra torneira
sai a água para o
copo
no pires com
analgésico
Há uma dor qualquer
na novidade
um cheiro ruim
misturado
ao de tinta nova
Sem dono à vista
um cachorro dorme
na calçada
A porta do elevador
se abre
para a senhora de
maiô e chapéu panamá
O zelador bebe
durante o expediente
e na esquina
contígua
o amolador de facas
oferece seus
préstimos
toda quinta-feira
Já perdi o fio:
o rude esmeril
lambe-me o metal
sem fagulha ou
grito
(de Novo endereço, 2002)
Mais magro
Mais magro
Meu amigo está mais
magro
Volto a encontrá-lo
dois ou três verões
mais tarde
e chego mesmo a
dizê-lo:
Você está mais
magro.
Problemas de
intestino...
responde-me esquivo
... já estive
pior, agora
voltei a
engordar.
Não peço detalhes
mas vejo o ombro
mirrado
entre as alças da
regata
Evito tocá-lo
pois a mera
proximidade física
parece estranha
agora
que meu amigo está
mais magro
Novamente juntos
caminhamos pela
orla marítima
Eu lhe recito algum
verso
ele me ensina outro
insulto
e há quase alegria
de trégua
não fosse o fato
dele estar mais
magro
Se ainda ontem
tocassem
os telefones
insones
na barra da
madrugada
e meu amigo
dissesse
palavras de
testamento
eu sairia correndo
para deitar-lhe
compressas
na testa já
repartida
Se fosse eu o
afogado
dentro da onda
invisível
de bílis, lua e
silêncio
ele pagava o
resgate
limpava o sal de
meus cílios
me devolvia em
segredo
sobre a toalha mais
limpa
Mas hoje estamos
exaustos
há um dreno em
nossa bondade:
minha boca só tem
dentes
e meu amigo
está mais magro
(de Novo endereço, 2002)
Sobre o autor
Nascido em 24 de
agosto de 1967, na cidade de São Paulo. Psicólogo pela
Universidade de São Paulo, com formação em psicanálise.
Editor. Autor de Toda mudez será conquistada (São
Paulo: Massao Ohno, 1992), Sistema de erros (São Paulo:
Pau-Brasil, 1996; prêmio Nascente 1994) e Novo endereço
(São Paulo: Juiz de Fora: Nankin/ Funalfa, 2002; prêmio Cidade
de Juiz de Fora, 2001). De 1990 a 2002, integrou o núcleo de
produção poética Cálamo, tendo participado de várias
antologias produzidas por aquele grupo. Atualmente trabalha na
Editora Ática e coordena a coleção de poesia brasileira
"Janela do caos", para a Nankin Editorial. Colaborador da
revista CULT, integra também a comissão executiva da
revista Rodapé.
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